Quando perguntado sobre o porquê de subir montanhas, George Mallory cravou seu piolet e respondeu: “porque elas estão lá!” A resposta tornou-se icônica no mundo do montanhismo e Mallory, que acabou sucumbindo tragicamente ao Everest enquanto tentava tornar-se um dos primeiros a chegar em seu cume, ganhou a eternidade.
Parofes não ligava para o Everest. Dizia que era uma grande besteira querer escalar uma montanha apenas pela glória, por ser a mais alta e famosa. Ele criticava o consumo excessivo dentro do esporte que amava, a objetificação daquilo que para ele era algo muito maior, muito além do que as pessoas entendem e conhecem.
"A montanha mais alta do mundo atrai todo tipo de gente. Gente rica, gente com muita grana, gente que vende tudo que tem pra chegar ao topo do mundo, a maioria é turista com grana, a minoria é oitomilista, muita farofada, muita sujeira, muito recordista, causas nobres, causas ridículas, tem de tudo…” O Circo do Everest, Parofes. Blog Alta Montanha, Maio de 2013

Paulo Roberto Felipe Schimidt, foi um montanhista brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, em 1977. Historiador por formação, descobriu-se montanhista de forma inesperada, ao ser obrigado a caminhar por algumas montanhas para fugir de um bloqueio nas estradas da Bolívia, enquanto fazia seu primeiro mochilão por lá. Praticava montanhismo por amor e paixão, fugindo de qualquer tipo de fama ou glória que a atividade pudesse trazer. Gostava de montanhas nacionais, sua preferida era o Pico das Agulhas Negras, no Parque Nacional do Itatiaia, bem como montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso na América do Sul. Possuía experiência em montanhas de 5.000 a 6000 metros nos andes atacameños, no norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha (6.176m) e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro (6.145m). Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur (5.920m) e o vulcão Sairecabur (6.000m). Edição livre do Blog Alta Montanha
Parofes partiu para montanhas maiores em 14 de maior de 2014.

Tive a grande honra de ter convivido com ele nos últimos de seus anos de vida e dividido algumas histórias e aventuras. Nos conhecemos no Chile, em 2010. Ele, um montanhista amante da fotografia. Eu, um fotógrafo amante das montanhas. Reconheci aquele brasileiro sorridente num albergue em San Pedro de Atacama e saímos juntos pelo Pueblo para fotografar e jogar conversa fora. Paixões em comum. Com ele aprendi muito sobre viajar sozinho, conhecer profundamente um lugar e ir além dos “tem que ir”, comuns em viagens turísticas. Sightseens à parte, Parofes gostava mesmo era de fazer uma siesta, deitado num banco de praça, numa cidadezinha erma no meio do deserto, depois de belo almoço. Sempre que eu pude, tirei uma soneca assim, imerso naquele lugar e momento, rendendo uma homenagem ao meu amigo.
Aqueles foram dias de descanso para ele que vinha de uma viagem longa pela Argentina e Chile, escalando montanhas e vulcões. Ele tinha acabado de escalar o Lincancabur, na fronteira com a Bolívia, a algumas horas de onde estávamos, e se preparava para conquistar os vulcões San Pedro e San Pablo, em solitário. Saí com ele para comprar os mantimentos e o acompanhei enquanto preparava as duas mochilas que carregaria até o cume. Nos despedimos um dia antes do motorista contratado para leva-lo até a base do vulcão passar lá para pegá-lo. Dois dias depois, segui minha viagem para Arequipa, no Peru e só voltamos a nos falar algum tempo depois em São Paulo.
Eu fazia uma viagem de autoconhecimento e descoberta. Há 15 anos atrás eu me encontrava perdido profissionalmente. Formado em Administração de Empresas, busquei a ascensão na montanha corporativa, não apenas para me sustentar e bancar meus sonhos, mas também para me realizar como ser humano. Aos 30 e poucos anos, eu já questionava essa escolha e esboçava um caminho diferente: a fotografia.

À medida que ainda dava meus primeiros passos, tateando no escuro, descobrindo pouco a pouco sobre quem realmente sou, Parofes já estava um pouco mais adiantado nesse caminho. Como eu, ele veio para São Paulo para trabalhar numa empresa e, um ano antes, havia saído do mundo corporativo para viajar. Além do equipamento necessário para escalar uma montanha em alta altitude, levava dois itens consigo: Uma gravata e seu mascote, o Parofito. Em cada cume que fazia, vestia a gravata e tirava uma foto com seu bichinho. Ele queria dizer às pessoas para que aproveitassem suas vidas, vivessem seus sonhos e, antes de tudo, queria lembra-las de serem autênticas e verdadeiras consigo mesmas, indo na contra-mão do senso comum que imprime um ritmo, ditando como devemos viver, quais viagens temos que fazer…
Anos depois, passando sua lua de mel na Tierra Del Fuego, os primeiros sintomas da leucemia surpreenderam Parofes como uma avalanche inesperada. Ao tratamento contra o câncer, chamou de o seu próprio Everest. Seu maior desafio não foi uma escolha, mas uma imposição, o qual enfrentou com bom humor e energia de um dos montanhistas mais bravos e casca grossa que esse país já conheceu.
Porém, assim como George Mallory, Parofes sucumbiu ao Everest. O montanhista inglês e seu companheiro Andrew Irvine partiram para o cume em 8 de junho de 1924 e nunca mais foram vistos. Mistério parcialmente resolvido muitos anos depois, em 1999, quando encontraram seu corpo a 8.155m de altitude, mas sem a confirmação de que teriam atingido os 8.848m totais da montanha. Parofes perdeu a luta contra a burocracia do sistema nacional de doação de medula óssea, pois, quando encontrou uma compatível, seu corpo já não tinha mais condições de receber o transplante.
Não vejo mais semelhanças entre os dois. Se de um lado Mallory, assim como outros montanhistas queriam reconhecimento e imortalidade do seu legado, Parofes preferia o anonimato e a solitude de uma montanha desconhecida, ou do parque do Itatiaia, por exemplo, lugar que considerava sua casa. Do hall da fama do montanhismo, comparo meu amigo com Tenzig Norway, o sherpa que acompanhou Sir Edmund Hillary na primeira escalada com sucesso ao topo dos Himalaias, em 1953. O povo sherpa refere-se ao Monte Everest como. Sagarmatha, "Cabeça do céu", ou então Chomolungma, “Deusa mãe do Mundo”, demonstrando um profundo vínculo espiritual com a montanha, olhando-a com profundo respeito. Da mesma maneira, Parofes sentia o sagrado enquanto diante da natureza, sem nenhum tipo de desafio material em ir até ela. Suas razões pessoais por trás de publicar relatos detalhados de suas viagens e escaladas era dividir sua paixão com as pessoas, levando-as, sempre que possível, a um mesmo lugar de profunda admiração e reverência.
Me sopram à mente, as palavras do título de um livro do Ailton Krenak; A vida não é útil. Da perspectiva dos povos originários, Krenak critica o modelo de desenvolvimento imposto pela ocidente, cujo utilitarismo e exploração de recursos naturais às custas da destruição do meio ambiente, sobreposição do lucro a qualquer tentativa de convivência harmoniosa com a natureza e outros seres que não humanos, priorizam uma única maneira de se viver, baseada no consumo e no valor econômico. A obra também aponta para o utilitarismo da vida humana, medida exclusivamente pelo valor econômico e utilitário que representa para a sociedade e transformada em mercadoria de troca. Uma visão que reduz a humanidade à lógica da produtividade e do consumo, distanciando as pessoas do seu verdadeiro ser e das conexões espirituais ao seu redor e impedindo os indivíduos de viverem de maneira plena, sensível e harmônica com outros seres e entidades que habitam a Terra.
Parofes não teve tempo de ler Krenak, mas aposto que concordaria com ele. Com a mesma certeza, sei que Ailton Krenak veria em Parofes um semelhante. Um amante da natureza com mesma visão de preservação e convivência, com a mesma consciência de que a montanha, o mar e a floresta são muito superiores ao ego dos indivíduos. Quando Parofes vestia a gravata por cima do anorak, a mais de 5.000m de altitude ele queria dizer para as pessoas: “Trabalhe menos, viva mais”, aprecie a vida ao seu redor, não importa se do alto de uma montanha ou na rua de uma cidade. A vida é boa, bela e viver é um grande presente. Viver é muito maior do que prazos e metas. Dinheiro é somente um papel que “traz o que há de pior nas pessoas”, palavras suas.
Ele também poderia muito bem ter dito que a vida não é útil e ainda ir além: a vida é curta, única e viver uma vida verdadeira e autêntica é a melhor maneira de honrar esse grande presente.

Nos vemos na montanha, meu amigo, pois “do alto, tudo se vê”.

Em 3 de Novembro de 2015, Pedro Hauck e Maximo Kausch conquistaram um vulcão de 5.845m nos Andes argentinos.
Descobriram que nenhum montanhista ainda havia conquistado aquele cume devido ao seu difícil acesso e localização remota.
Batizaram a montanha de Monte Parofes e jogaram parte das cinzas do amigo nela.
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